Estava de férias e tive a oportunidade de conhecer Salvador. As tardes eu passava ao sol e mar de Itapuã, onde estava hospedada. Enquanto a grande maioria trabalhava ou estava em sala de aula, eu aproveitava para caminhar ou me deitar em uma cadeira a beira da praia. Numa destas tardes, resolvi dar uma voltinha em um Shopping
Com lojas térreas, cujas portas de entrada davam para um corredor coberto, ligadas em blocos, entrecortadas por ruas com floreiras e bancos espalhados. Onde estavam as lancherias havia uma concentração de mesas.
Era um dia de semana e a maioria das pessoas estava em seus serviços ou nas escolas. Estava sentada em uma das mesas na rua, uma espécie de praça de alimentação ao ar livre, bem em frente a uma lanchonete do Mc Donald´s.
Saboreava um sorvete e olhava o movimento, quando vi um menino se aproximar da porta de entrada. Franzino, entre sete a dez anos, vestindo roupas bastante usadas que mais pareciam de um irmão maior ou de qualquer outra criança. Nos pés sujos, das ruas e areia da praia, uma minúscula chinela de dedos.
Pensei logo que ele viria me pedir alguma coisa. Preparei-me para um não, e sem dar muita atenção para que ele saísse logo dalí.
Em Salvador, como em todas as cidades grandes, existem muitas crianças pedido esmola, fazendo malabarismo nos sinais, lavando vidros de carros ou vendendo qualquer coisa. Vejo muito disto em Porto Alegre, mas naquela cidade o número de pedintes era muito grande. Basta se tirar os olhos das belezas turísticas que se via a pobreza e a miséria. Grandes prédios convivendo com pequenas favelas construídas nos seus muros. A elite e a miséria em um mesmo espaço, separados somente por um muro. De um lado paredes que davam para os jardins, do outro, paredes de muitas casas. Retrato de uma desigualdade. Ricos e miseráveis, somente com um muro os dividindo.
Aquele menino parecia vir do lado do muro onde tinham as casas, mas ao invés dele vir em minha direção, apenas parou em frente ao balcão e ficou com a cabeça direcionada para as fotos. Dava para ver seu olhar, talvez acostumado a comer aquele tipo de lanche somente quando alguém lhe dava o resto ou quando buscava as sobras nas latas de lixo.
Percebi que a balconista estava por mandá-lo embora, quando um jovem que aguardava seu lanche, aproximou-se do menino, inclinou o corpo, olhou para os olhos da criança, e perguntou-lhe se queria comer algum daqueles lanches.
O menino baixou os olhos. Balançando a cabeça respondeu que sim. O moço então, ergueu o corpo, abriu a carteira, pegou o dinheiro, pagou por um lanche e solicitou que o tíquete do pedido fosse entregue ao garoto.
Alguns segundos se passaram entre a indecisão da balconista e o espanto do menino. Ouvi quando o jovem lhe disse: “Pegue!”. Pegou seu lanche que estava pronto para levar, e se retirou. Já na rua, virou-se para ver se a balconista havia atendido o menino e como isto havia sido feito, seguiu seu caminho calmamente. Não o vi mais e até hoje. Não sei se era um morador da cidade ou um turista.
Estava muito perto da entrada da lanchonete e o pouco movimento fez com que eu pudesse ter presenciado tudo. Como espectadora de uma peça teatral, sentada em uma das cadeiras de frente para o palco, onde poderia ver e ouvir tudo. O moço havia saído da cena como havia chegado, e sem que eu percebesse sua presença, com apenas uma fala havia modificado toda a peça.
Pude ver claramente a fisionomia daquela criança. Alguma coisa havia mudado nela. Talvez seu olhar já não parecesse mais tão ausente e até mesmo se via o esboço de um sorriso. Ao receber o lanche solicitou que fosse colocado em uma bandeja. A balconista nada falou e apenas atendeu ao pedido, e o menino com a bandeja e o lanche nas mãos, dirigiu-se a uma das poucas mesas, que havia dentro da lanchonete.
A tarde estava agradável e os poucos clientes preferiam estar na rua. Dentro da lanchonete, só as atendestes e o menino, que escolheu uma mesa em frente a uma janela. Sentou-se, pegou o guardanapo de papel, abriu a caixa e retirou o sanduíche. Olhou o lanche alguns segundos e o mordeu delicadamente.
Ainda tinha o corpo franzino, as roupas grandes, as chinelas pequenas e os pés sujos, mas não tinha mais a cabeça baixa e o olhar triste.
Dentro daquela lanchonete, sentado em uma das mesas, sendo atendido como todo e qualquer cliente, somente aquele garoto mordendo o seu sanduíche.
Mordidas de dignidade.
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